* Tudo normal!
ESCUTANDO NO MOMENTO: O Samba me Cantou - Luciana Mello
LENDO NO MOMENTO: Contos de Vista - Elisa Lucinda
Que sejam bem felizes: Cartola, Clara e Eu
Sabe quando você escuta uma música várias vezes, mas só presta atenção em algo peculiar muito depois? Primeiro de tudo, que a música é de um autor que adoro: Cartola; e que a voz é uma das que mais sou apaixonado: Clara Nunes. Isso já serviria para eu ter prestado atenção nela há mais tempo.
O nome da música é 'Que seja bem feliz', e, para mim, o final dela é genial. A música fala de uma despedida, seja de um filho deixando a mãe, seja de um homem nordestino indo 'tentar a vida' no sul, seja de uma mulher deixando a família pelo sonho de ser cantora de rádio, o que for, a música continua sempre bonita.
“Se bom pra você for/ Podes partir, amor/ E que sejas feliz/ E muito bem feliz”. Vejam que no começo vem logo a permissão para a partida. Os versos são pequenos, pois não há muito o que se falar em momentos como esse; e a repetição dos votos de felicidades também mostra o pouco que há para se falar. Isso também lembra que, lendo friamente, parece ser falta de rima; mas quem nunca repetiu uma frase em um momento de emoção que atire a primeira pedra. São essas frases repetidas que fotografamos em nossas mentes.
“Que Deus e a natureza/ As aves nos seus ninhos/ As flores pela estrada/ Perfumem todos os caminhos”. Quando li essa segunda estrofe, lembrei-me de colorir as coisas. Assim penso que pensou Cartola, e que penso que pensou o eu-lírico, como se fosse para mostrar ao receptor a veracidade do desejo de felicidade, apesar da dor da separação.
“Eu aqui ficarei/ Por você rezarei/ Todas as tardes/ Ao bater, Ave-Maria”. A terceira estrofe, assim como a quarta, foram as que chamaram a minha atenção. Pois o último verso propositalmente me dá duas interpretações. Ao bater o quê? Todas as tardes, o sino da igreja para se rezar Ave Maria? Ou eu-lírico fala do bater da saudade, todas as tardes, ao lembrar de como é bom ter aquela pessoa ao pôr do sol, e a Ave Maria é uma interjeição utilizada pelo sentimento para dá aquela travada na garganta?
“Que sejas bem feliz/ E leves-me na mente/ Que cresçam suas glórias/ E as minhas lágrimas contentes”. Bem, o último verso dessa última estrofe foi a que achei mais genial, porque foi utilizando da boa gramática que ele chegou a um magnífico duplo sentido. A primeira ideia que se tem é de que, com as glórias alcançadas, as lágrimas dela sairiam contentes, felizes, realizadas. Porém, escutando e percebendo semelhanças comigo, percebi que esse 'contentes' também pode ser o presente do modo subjuntivo do verbo contentar. Daí a interpretação mudaria de figura, pois estaríamos falando que o receptor teria que se contentar com as lágrimas do eu-lírico daquele instante, pois uma vez saindo de casa, aquelas lágrimas seriam as últimas lembranças. Fotografei: aquelas lágrimas seriam as últimas lembranças.
Não sei se Cartola quis mesmo fazer esse duplo sentido, mas parece-me que Clara passou isso em sua interpretação, pois não tem como dizer que é qualquer uma das possibilidades só de escutá-la. Inexplicavelmente ela consegue passar todas as situações, tudo de uma vez. Isso só mostra que Clara Nunes é uma deusa, que Cartola é um rei, e que eu só sei fazer crônica.