A dança da alegria

A dança da alegria - CA Ribeiro Neto

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O ciclo sem fim ou Era para apenas rir II

Começando mais uma série hoje, 'Você pode até querer brincar de solidão, mas o mundo não é uma bolha de sabão' é uma série de crônicas presentes no meu livro Desenho Urbano, onde manifesto que sempre precisamos do próximo e que "não é possível ser feliz sozinho". Além de 'O ciclo sem fim ou Era para apenas rir II', essa série terá os textos 'Enxugando os pratos', 'Relativo', 'Sem barba, com amor, meu amor' e 'Tudo'.


O ciclo sem fim ou era para apenas rir II

Estava voltando para casa, mais precisamente dentro de um ônibus parado em frente a um semáforo que alternava de cor naquele momento, quando olhei para o outro lado da avenida, onde os carros passavam em sentido contrário e achei esse grito de largada do sinal verde muito parecido com uma debandada de uma manada. Sequencialmente e inexplicavelmente lembrei também do filme 'O Rei Leão', na cena em que o Mufasa, pai de Simba, morre atropelado por gnus.
Não tinha mais jeito, estava elaborando outra associação sociológica e não podia mais evitar. Sendo assim, escrevo o que visualizei.
 
Em casa, assistindo cenas no youtube, relembrei partes do filme que tanto assisti e que marca a minha vida como o primeiro choro dentro de um cinema, justo na cena da morte de Mufasa – é, teve outras vezes sim.
 
Como toda introdução, começo com a música 'Ciclo sem fim' onde todos os animais estão indo para aquela tal pedra para ver o batizado de Simba. Vejam bem, a versão em português, que é a que eu conheço e é a que influenciou, de alguma forma, os telespectadores brasileiros, trata de um rio que guiará a todos no ciclo sem fim “à dor e à emoção; à fé e ao amor” – ou seja, aos sentimentos vivenciados em nossas vidas – e que nos levará aos nossos caminhos: este ponto, para mim, é o norte de todo o filme, pois, apesar das adversidades da vida, fazemos parte de uma coletividade que compõe esse 'rio', esse 'ciclo'. Explico mais sobre isso mais na frente.
 
Na cena da morte de Mufasa – a cena que inspirou essa crônica e de maior abstração minha – vemos aí a abordagem da família como célula fundamental da sociedade, ainda que esse pensamento ande meio deturbado ultimamente. O trânsito caótico, com gnus no lugar de carros e hienas no lugar dos motoboys – no meu irônico pensamento –, é só um dos problemas enfrentados por milhares de pais de família que praticamente dão sua própria vida para garantir um futuro para seus filhos. Percebam que todos os gnus estão correndo para o mesmo lado, num “ciclo sem fim...”: no tal ciclo da introdução do filme há coisas boas e más que comporão o nosso caminho.
 
Quando Mufasa morre, Simba foge, ainda criança, e faz amizade com Timão e Pumba, que lhe apresentam uma nova filosofia de vida: Hakuna Matata. Uma filosofia em que “os seus problemas você deve esquecer. Isso é viver, é aprender”. Segundo os novos amigos, essa filosofia resolve todos os seus problemas, basta esquecê-los. Levando-se em conta que Timão é um espertalhão que sempre quer se dar bem e Pumba é uma cara, digamos, relapso em questão de higiene. Somando isso tudo à questão que Simba passa com eles o fim da infância, a adolescência e o começo da juventude, estamos falando do pensamento juvenil de rebeldia e contestação, em que a maioria das pessoas passam na adolescência, geralmente carregados de problemas familiares, perfeitamente encaixável na vida de nosso protagonista com a morte de seu pai.
 
Contudo, tem uma hora em que não dá mais para fechar os olhos para os problemas ao seu redor. É a hora de olhar para si e decidir o que há de se fazer. Isso acontece no filme também, numa de suas passagens mais bonitas. Simba está andando sozinho quando o Rafiqui – o babuíno que identifico como a consciência – começa a atormentá-lo com uma música esquisita e quando eles começam um diálogo, surge logo uma pergunta: “Quem é você?”. Bem cara de consciência, não? Ao Simba não saber responder-lhe, o babuíno afirma que ele é filho de Mufasa, e mais: afirma que este está vivo! Querendo ver seu pai, o jovem leão segue Rafiqui até o leito de um lago ou rio (rio de novo? Hum...), que mostra-lhe seu reflexo. Então Simba não ver mais seu próprio reflexo e sim, a fisionomia de seu pai, ao mesmo tempo em que o macaco diz: “Viu? Ele vive em você!”. Daí aparece nas nuvens a imagem de Mufasa que acusa o filho de ter o esquecido e depois diz uma frase que, ao meu modo de ver, é fundamental para se compreender o que afirmo agora: “Você é muito mais do que pensa que é. Você tem que ocupar seu lugar no ciclo da vida”. Pessoal isso nada mais é do que a teoria dos Papéis Sociais: cada um não é apenas um ser isolado e que só depende de si para sobreviver. Como célula da sociedade, precisa trabalhar junto com ela para o organismo social funcionar perfeitamente.
 
Depois o leão e o babuíno continuam a conversar sobre como é difícil retomar a vida depois de tanto tempo tentando esquecê-la. Então Rafiqui dá uma porrada na cabeça de Simba e quando este vai reclamar, aquele responde: “Não interessa! Está no passado! O passado pode doer, mas ou você pode fugir dele ou aprender com ele”. Está aí quebrada a filosofia Hakuna Matata e Simba volta para defender seu trono.
 
Quanto a esse negócio de trono, é só para embelezar a história infantil. O que há em jogo é a situação social. Scar, o vilão, representa a concorrência, o mercado de trabalho, a inveja.
 
Tudo que falei pode ser encarado de duas formas. Ou você entende o filme como um orientador ou como um manipulador. Eu, pelo menos, assisti esse filme quando criança e não deixei de ser rebelde e contestador em minha adolescência, então, se a intenção era manipular, não deu certo comigo.
 
Encerro este texto aqui, com a sensação de que aprendi algo. Nem que tenha sido apenas a ter cuidado ao atravessar uma rua repleta de gnus velozes.


CA Ribeiro Neto
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* Como diria o pai de Édipo, está tudo tão bem, que começo a me preocupar em quanto tempo durará a felicidade.
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ESCUTANDO NO MOMENTO: Bola de Meia - Seu Jorge

LENDO NO MOMENTO: Terminei o Cemitério dos Vivos, do Lima Barreto; em dois dias li o 90 Livros Clássicos para Apressadinhos; começarei agora o Alguma Poesia, do Drummond (versão fac-símile, linda!!) e estou lendo na Livraria Cultura o Ladrão de Cadáveres - Patrícia Melo - Cap. 12.

Boa Sorte

3 comentários:

Thiago César disse...

=O
é... faz sentido...

Anônimo disse...

Nossa, eu nunca havia pensado no filme dessa forma. Sobre gnus e hienas como carros, a morte de Mufasa como as dificuldades da vida, Timão e Pumba como rebeldia adolescente, Rafiqui como consciência, Scar como os reveses e contras, concorrência, inveja, e tantas mais alegorias que você trata na postagem.
A parte da batida na cabeça é marcante até pra mim! É a história do "tudo passa, até uva passa" (sem trocadilhos com a UEVA, ok?).
Eu assisti quando criança, na fita de vídeo, o antigo VHS, tenho ainda hoje! Sei a maioria das músicas decoradas ainda, antes sabia todas completamente, até as falas! Mas que o filme era muito mais do que aparenta, eu já sabia que era.

Paulo Henrique Passos disse...

É, tu não foi uma criança normal, no bom sentido é claro. hehehe

Na leitura do parágrafo - sexto - em que fala do Rafiqui, as falas dele me remeteu àquela ideia de que carregamos com a gente todos os nossos antepassados, daí sermos mais negros do que pensamos.

E depois dizem que as coisas infantis são menores, mais fáceis, de um estágio menor, isso na literatura, no teatro e por aí vai.