João do Rio é um dos autores de mais sensibilidade para com a cidade, com a sociedade e com a população. É incrível o poder que ele tem de o olhar o que aparentemente é banal e transformar aquilo em encanto e sentimento. No livro “A Alma Encantadora das Ruas” ele narra com exemplos o que faz a rua ser tão fantasiosa quanto real. Puxadores de carroças, vendedores de rezas, urubus – pessoas que trabalham com a preparação de velórios, tatuadores e tatuados, o movimento de todas as classes no meio das Missas do Galo por todo a cidade. Ele consegue misturar aí admiração, graça, galanteio, comédia, indignação, pena, compaixão, melancolia e saudade, tanto em um único personagem, como no conjunto deles.
Ele consegue colocar em nós a lente do encantamento ou foi a rua que o encantou e o utilizou a seu serviço?
De qualquer forma, destaco agora trechos da crônica “Tabuleta”, uma das melhores do livro citado:
“Vai um homem num bonde e vê de repente, encimando duas portas em grossas letras estas palavras: Armazém Teoria.
Teoria de quê, senhor Deus? Há um outro tão bizarro quanto este: Casa Tamoio, Grande Armazém de líquidos comestíveis e miudezas. Como saber que líquidos serão esses comestíveis de que a falta de vírgula fez um assombro? (…)
Na rua do Catete há uma venda que se intitula O Leão da Gruta. Porquê? Que tem a barata com o leão que nem ao menos é conhecido de Daniel? Defronte dessa venda há, entretanto, um café que é apenas Café de Ambos Mundos. E se não vos bastar um café tão completo, aí temos um mais modesto, na rua da Saúde o Café B.T.Q. E sabem que vem a ser o B.T.Q., segundo o proprietário? Botequim pelas iniciais! Essa nevrose de abreviações não atacou felizmente o dono da casa de pasto da rua de São Cristóvão, que encheu a parede com as seguintes palavras: Restaurante dos Dois Irmãos Unidos Por...
Unidos por... pelo quê? Pelo amor, pelo ódio, pela vitória? Não! Unidos Portugueses. Apenas faltou a parede e ficou só o Por – para atestar que havia boa vontade. Assim é que uma casa da rua do Senhor dos Passos tem este anúncio: Depósito de aves de penas. É pouco? Um outro assegura: Depósito de galinhas, ovos e outras aves de penas – o que é, evidentemente, muito mais.
(…) A origem desses títulos é sempre curiosa. Uma casa chamada Príncipe da Beira porque o seu proprietário é da Beira, uma venda de Campo Grande tem o título feroz de Grande Cabaceiro porque perto há uma plantação de cabaças; há açougue Aliança e Fidelidade porque é um hábito pôr aliança como título com duas mãos apertadas e fidelidade com um cachorro de língua de fora, bem no meio da parede. (…) A coisa, porém, toma proporções assombrosas quando o proprietário é pernóstico. Assim, na rua Visconde do Rio Branco há uma armazém Planeta Provisório, e noutra rua Planeta dos Dois Destinos, um título ocultista sibilino; no Catete, um Açougue Celestial. (…)
Na rua Dr. João Ricardo há um restaurante com este título: Restauração da Vitória.
- Por que “restauração da vitória”? – indagamos o proprietário, o sr. Colaço.
- Eu explico – diz ele – há cerca de trinta anos, os espanhóis invadiram a ilha Terceira. Como eram poucos os soldados para repelirem o castelhano, os lavradores soltaram todos os touros bravos na praia da Vitória e dessa maneira os espanhóis fugiram. Os paraguaios resistiram também tanto tempo por causa dos touros importados da Argentina.
- Tudo tem uma explicação neste mundo! (…)
Um rapazito inteligente era encarregado de fazer a fachada da Casa do Pinto. Fez as letras e pintou um pintainho. O proprietário enfureceu:
- Que tolice é esta?
- Um pinto.
- E que tenho eu com isso?
- O senhor não é Pinto?
- O meu nome é Pinto, mas eu sou galo, muito galo. Pinte-me aí um galo às direitas!
E outro, encarregado de fazer as letras de uma casa de móveis, já pintara 'vendem-se móveis' quando o negociante veio a ele:
- Você está maluco ou a mangar comigo!
- Por quê?
- Que plural é esse? Vendem-se, vendem-se... quem vende sou eu e sem sócios, ouviu? Corte o m, ande!”
Um humor digno de um comediante de stand-up! Mas o que este faz não é mais do que fazer piada de histórias encontradas em nosso cotidiano?
CA Ribeiro Neto
Para finalizar em grande estilo, mostro a vocês a foto de uma faixa de uma funerária que tem ao lado da Biblioteca Dolor Barreira, local de encontro do Eufonia e que fica na Av. da Universidade:
Para quem tem preconceito com desempregados, esta funerária só emprega quem já é empregado!
CA Ribeiro Neto
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ESCUTANDO NO MOMENTO: Notícia - Nelson Cavaquinho
LENDO NO MOMENTO: A alma encantadora das ruas - João do Rio - pg. 136 / Não contem com o fim dos livros - Eco e Carriere - pg 59 / Dom Casmurro e os Discos Voadores - Machado de Assis e Lucio Manfredi - cap. 108.
Boa Sorte