O Chico Buarque, como compositor, é considerado por muitos, e por mim também, como o maior que o Brasil já teve. Mas na literatura ele não é tão unanimidade assim. Gosto de lê-lo, porque ele me dá uma sensação que só senti nos livros dele. Uma sensação de não saber ao certo se estou gostando ou não, durante a leitura. Mas quando se completa o livro, você, enfim, percebe que o livro é bom. Segue agora um trecho do livro Leite Derramado, dele, que eu achei sensacional!
Leite Derramado. Chico Buarque. Capítulo 11. Página 61.
"[...] Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. O ciúme é então a espécie mais introvertida das invejas, e mordendo-se todo, põe nos outros a culpa de sua feiura. Sabendo-se desprezível, apresenta-se com nomes supostos [...]"
Agora segue o conto que eu fiz, inspirado nesse trecho:
O aperitivo e o prato principal no pagode do Bentinho
O pagode na casa do Bentinho já estava marcado. Sendo ele do Rio,
outro tema não podia haver e a festa seria monumental. Mas na
faculdade falavam mais sobre outra coisa: Com quem Fabiano iria
passar a festa em chamego. Ele queixava Ana Terra e Iracema ao mesmo
tempo, de forma que ninguém tinha absoluta certeza do sim e do não
entre os três. Mas no pagode ele tinha que escolher uma ou a guerra
seria anunciada.
As duas moças em questão tinham a mesma certeza de que o que
falavam sobre a rival era fofoca, intriga para se ver confusão; que
Fabiano só tinha olhos para elas. Já ele não revelava o seu
segredo nem para os amigos mais próximos, deixando tudo para o dia
da festa.
Estrategicamente, o garanhão deixou para chegar na festa bem depois,
já com as duas pretendentes por lá. Primeiramente, lógico, ele foi
falar com a rapaziada, tomar uma cerveja e ver
direito o som da roda de samba. Confirmou que não tinha negócio de
banjo entre os instrumentistas e que tocavam Leci Brandão, daí sim,
soube realmente que a festa seria boa.
Num primeiro contato, ele falou rapidamente e em tempos iguais com as
duas, que não estavam perto uma da outra. Ele, muito bem quisto,
conversou com todos os agrupamentos de amigos. Parecia mesmo que ele
estava medindo todos os seus passos, para não revelar um interesse
maior por uma do que pela outra precipitadamente. Acabou que, com
isso, ele sozinho disputou atenção com a banda, nesse momento
cantando João Nogueira.
Com mais um tempo de cerveja para todos, a banda resolveu usar sua
arma secreta, um pot-pourri de Martinho da Vila. Subitamente a festa
entrou em outra aura. Todos vibravam, quem sabia dançar, dançava,
quem não sabia ficava no ciscado no mesmo lugar e um casal lá
improvisou uma encenação de mestre -sala e porta-bandeira.
Fabiano, então, aproveitando o momento que a cambada mudou a atenção
para os dançarinos, se aproximou de Ana Terra e puxou-a para dançar.
Logicamente Iracema viu logo, mas ficou no seu canto, vendo onde isso
ia dar. Enquanto dançavam, eles tiveram essa conversa.
- Pensei
que estava com medo de mim?
- Achou
mesmo que eu ia aguentar passar a noite inteira só lhe olhando e
não fazendo nada?
- Não
seria uma possibilidade estranha. Passou boa parte da noite sem nem
lembrar da minha presença...
- Essa
festa não teria graça sem esse momento, só nosso, apesar de que
aqui nós não teremos isso plenamente.
- É,
aqui realmente, estamos próximos, mas não estamos a sós.
- Mas
podemos resolver isso mais tarde!
- Vamos
ver, vamos ver... não sou tão fácil assim.
Daí, teve mais conversas aleatórias e no final do selecionado de
Martinho, ele pediu licença para ir ao banheiro, um instante. Sendo
que na volta, ele não foi direto para perto dela, foi rodar entre os
amigos mais uma vez. Falou algo no ouvido do tocador de cavaquinho e
continuou lá meio próximo.
Iracema já tinha desistido de se animar, tinha sentado numa cadeira,
fazendo bico, emburrado de vez. Então, o cara do cavaquinho puxou o
pedido do Fabiano, a clássica Aquarela do Brasil. Todo mundo pirou
de vez, é uma música que todo mundo se animaria e saberia pelo
menos um trecho. Mas era dos versos sobre o Ceará de que ele
precisava.
Ele se aproximou da bicuda sentada, estendeu a mão como um convite
para a dança e deu um sorriso e uma piscadinha na mesma hora do
trecho cearense. Sem precisar nenhum dos dois falar nada, ela se
levantou e foi dançar com ele. Mas durante esse momento, ela começou
a fala:
- Pensei
que ia ficar dançando só com a Ana!
- Ali
era só um aquecimento, um aperitivo para esse prato principal!
Nessa hora ela abriu a defesa, deu um sorriso safado e falou
sussurrando, no ouvido dele:
- Pois
então, pode comer!
Fabiano não iria responder com palavras, mas mesmo se quisesse, não
teve tempo para isso. Ana Terra ficou fula de raiva com toda aquela encenação,
a escolha de uma música, o jeito mais sensual que eles dançavam e
ela não escutou o que ela lhe disse no ouvido, mas deduziu pelas
faces deles que ela iria rodar nessa história. Mas não mediu as
ações, chegou lá apartando os dois e dando uma mãozada na cara da
Iracema, que também não se intimidou e voou para cima e começou a
briga.
E, moças, desculpem, mas briga de mulher é muito massa! Não tem
força masculina que consiga soltar um cacho de cabelo da mão da
adversária! Foi zunhada e mordidas à torto e à direito. Ana Terra
era mais forte e jogava Iracema para todos os lados. Mas esta tinha
uma experiência em artes maciais e foi quem levou a luta para o
chão, com uma rasteira surpreendente. Aí sim a peleja esquentou de
vez. A roda humana que delimitava o ringue estava enlouquecida e
ninguém, até agora, ousou apartar.
Fabiano, misteriosamente sumiu; dizem que se mandou com a Luzia, uma
negra tanajura.
Depois de encerrada a briga, a roda de samba se recompôs, tocando
Vai Passar, do Chico Buarque, na tentativa de ser, mais uma vez, o
prato principal da festa.
CA Ribeiro Neto
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ESCUTANDO NO MOMENTO: Isn't She Lovely - Ed Motta [2010 - Live in Citibank Hall
LENDO NO MOMENTO: Tocaia Grande - Jorge Amado - pg. 350 || A Normalista - Adolfo Caminha - pg. 60.
LENDO NO MOMENTO: Tocaia Grande - Jorge Amado - pg. 350 || A Normalista - Adolfo Caminha - pg. 60.
Boa Sorte || ApontArte