A dança da alegria

A dança da alegria - CA Ribeiro Neto

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Tabuletas das encantadas ruas


João do Rio é um dos autores de mais sensibilidade para com a cidade, com a sociedade e com a população. É incrível o poder que ele tem de o olhar o que aparentemente é banal e transformar aquilo em encanto e sentimento. No livro “A Alma Encantadora das Ruas” ele narra com exemplos o que faz a rua ser tão fantasiosa quanto real. Puxadores de carroças, vendedores de rezas, urubus – pessoas que trabalham com a preparação de velórios, tatuadores e tatuados, o movimento de todas as classes no meio das Missas do Galo por todo a cidade. Ele consegue misturar aí admiração, graça, galanteio, comédia, indignação, pena, compaixão, melancolia e saudade, tanto em um único personagem, como no conjunto deles.
Ele consegue colocar em nós a lente do encantamento ou foi a rua que o encantou e o utilizou a seu serviço?
De qualquer forma, destaco agora trechos da crônica “Tabuleta”, uma das melhores do livro citado:


“Vai um homem num bonde e vê de repente, encimando duas portas em grossas letras estas palavras: Armazém Teoria.
Teoria de quê, senhor Deus? Há um outro tão bizarro quanto este: Casa Tamoio, Grande Armazém de líquidos comestíveis e miudezas. Como saber que líquidos serão esses comestíveis de que a falta de vírgula fez um assombro? (…)
Na rua do Catete há uma venda que se intitula O Leão da Gruta. Porquê? Que tem a barata com o leão que nem ao menos é conhecido de Daniel? Defronte dessa venda há, entretanto, um café que é apenas Café de Ambos Mundos. E se não vos bastar um café tão completo, aí temos um mais modesto, na rua da Saúde o Café B.T.Q. E sabem que vem a ser o B.T.Q., segundo o proprietário? Botequim pelas iniciais! Essa nevrose de abreviações não atacou felizmente o dono da casa de pasto da rua de São Cristóvão, que encheu a parede com as seguintes palavras: Restaurante dos Dois Irmãos Unidos Por...
Unidos por... pelo quê? Pelo amor, pelo ódio, pela vitória? Não! Unidos Portugueses. Apenas faltou a parede e ficou só o Por – para atestar que havia boa vontade. Assim é que uma casa da rua do Senhor dos Passos tem este anúncio: Depósito de aves de penas. É pouco? Um outro assegura: Depósito de galinhas, ovos e outras aves de penas – o que é, evidentemente, muito mais.
(…) A origem desses títulos é sempre curiosa. Uma casa chamada Príncipe da Beira porque o seu proprietário é da Beira, uma venda de Campo Grande tem o título feroz de Grande Cabaceiro porque perto há uma plantação de cabaças; há açougue Aliança e Fidelidade porque é um hábito pôr aliança como título com duas mãos apertadas e fidelidade com um cachorro de língua de fora, bem no meio da parede. (…) A coisa, porém, toma proporções assombrosas quando o proprietário é pernóstico. Assim, na rua Visconde do Rio Branco há uma armazém Planeta Provisório, e noutra rua Planeta dos Dois Destinos, um título ocultista sibilino; no Catete, um Açougue Celestial. (…)
Na rua Dr. João Ricardo há um restaurante com este título: Restauração da Vitória.
- Por que “restauração da vitória”? – indagamos o proprietário, o sr. Colaço.
- Eu explico – diz ele – há cerca de trinta anos, os espanhóis invadiram a ilha Terceira. Como eram poucos os soldados para repelirem o castelhano, os lavradores soltaram todos os touros bravos na praia da Vitória e dessa maneira os espanhóis fugiram. Os paraguaios resistiram também tanto tempo por causa dos touros importados da Argentina.
- Tudo tem uma explicação neste mundo! (…)

Um rapazito inteligente era encarregado de fazer a fachada da Casa do Pinto. Fez as letras e pintou um pintainho. O proprietário enfureceu:
- Que tolice é esta?
- Um pinto.
- E que tenho eu com isso?
- O senhor não é Pinto?
- O meu nome é Pinto, mas eu sou galo, muito galo. Pinte-me aí um galo às direitas!
E outro, encarregado de fazer as letras de uma casa de móveis, já pintara 'vendem-se móveis' quando o negociante veio a ele:
- Você está maluco ou a mangar comigo!
- Por quê?
- Que plural é esse? Vendem-se, vendem-se... quem vende sou eu e sem sócios, ouviu? Corte o m, ande!”


Um humor digno de um comediante de stand-up! Mas o que este faz não é mais do que fazer piada de histórias encontradas em nosso cotidiano?
 

 CA Ribeiro Neto

Para finalizar em grande estilo, mostro a vocês a foto de uma faixa de uma funerária que tem ao lado da Biblioteca Dolor Barreira, local de encontro do Eufonia e que fica na Av. da Universidade:


Para quem tem preconceito com desempregados, esta funerária só emprega quem já é empregado!

CA Ribeiro Neto
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ESCUTANDO NO MOMENTO: Notícia - Nelson Cavaquinho
LENDO NO MOMENTO: A alma encantadora das ruas - João do Rio - pg. 136 / Não contem com o fim dos livros - Eco e Carriere - pg 59 / Dom Casmurro e os Discos Voadores - Machado de Assis e Lucio Manfredi - cap. 108.

Boa Sorte

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Análise brega-lírica da música “Você não me ensinou a te esquecer”, de Fernando Mendes

Respondendo a mais um desafio, trago para vocês mais uma análise de uma música brega, que ficou bem conhecida pelo filme Lisbela e o Prisioneiro. Eis a letra e a música na versão do Caetano Veloso e na versão do próprio autor Fernando Mendes.


Análise brega-lírica da música “Você não me ensinou a te esquecer”, de Fernando Mendes


Mais uma música brega de trabalho primoroso e que fica esquecida pelo preconceito com o ritmo. “Você não me ensinou a te esquecer” é só uma das belas canções escritas por Fernando Mendes, tais como “Cadeira de Rodas”, “Sádico Poeta” (vale a pena escutar essas duas também) e muitos outros.
 
Na verdade, de vez em quando ele repete muito um assunto; por exemplo, nessa “Cadeira de Rodas” ele sempre via a menina na porta da casa dela, quando, segundo ele, era o único momento de alegria dela, mas depois ela sumiu e vocês escutem o resto. Com essa história de ver a menina na frente da casa, ele tem outras que são: “A Menina da Calçada”, “A Menina da Janela”, “Amando na Calçada”. Ele também tem umas histórias que parecem coisas mal resolvidas, como paixão por professoras e por meninas de 14 anos (quando ele também menor de idade, não é pedofilia, não!).
 
Interessante mesmo é que ele, apesar do que mencionei acima, diversifica muito suas músicas, parecendo até que a intenção era mesmo atingir vários assuntos e chegar de alguma forma no calo de todos os ouvintes – daí a entrega de seus apreciadores à bebida. Ele fala de conquista, paixão, traição, construção de família feliz, gravidez, amor platônico, amor doentio, escravizar-se e libertar-se de um amor e mais diversos assuntos e em diferentes personalidades e maturidades de narradores. Se fosse um contista ou romancista, suas histórias e personagens seriam muito bem construídos.
 
Mas, vamos à música que escolhi para detalharmos, posto que é de uma complexidade lírica linda, e que é devidamente conhecida graças à Caetano Veloso, que regravou-a magnificamente.
 
“Não vejo mais você faz tanto tempo/ Que vontade que eu sinto/ De olhar em seus olhos, ganhar seus abraços/ É verdade, eu não minto” - aqui começa a explanação da situação, já de cara. Os primeiros versos já começam a primeira curiosidade, pois, aparentemente, o primeiro está desconectado sintaticamente do resto da estrofe, mas semanticamente está totalmente ligado. Inclusive essa falta de conexão acentua a situação de aflição do eu-lírico. Curioso também é o último verso, dessa estrofe, que chega a ser cômica, mas que acarreta uma sinceridade profunda.
 
“E nesse desespero em que me vejo/ Já cheguei a tal ponto/ De me trocar diversas vezes por você/ Só pra ver se te encontro” - nessa estrofe é perfeitamente perceptível a entrega que um homem pode fazer a um sentimento. “De me trocar diversas vezes por você” é, talvez, o verso mais complexo deste poema, que abre margem para diversas interpretações, mas eu prefiro compreender como um simples delírio de saudade.
 
“Você bem que podia perdoar/ E só mais uma vez me aceitar/ Prometo agora vou fazer por onde nunca mais perdê-la” - já nesses versos, confesso não ver nada demais. Mas importante ressaltar os termos geralmente utilizados na fala e não tanto na escrita, como por exemplo o começo dessa estrofe. Além, também, da incrível sonoridade que há na poesia. Tudo bem que é uma música, mas não é qualquer letra que as palavras caminham em nossa mente tão maciamente.
 
“Agora, que faço eu da vida sem você?/ Você não me ensinou a te esquecer/ Você só me ensinou a te querer/ E te querendo eu vou tentando te encontrar” - chegando ao refrão, percebam: não dá para cantar sem fechar os olhos! Isso se deve a carga emotiva que há nesses versos. Uma pergunta emblemática, que desarmaria a pessoa mais fria; seguido da resposta em grande estilo e que ainda retoma o verso complexo no qual o autor confunde-se com a pessoa amada para tentar encontrá-la.
 
“Vou me perdendo/ Buscando em outros braços seus abraços/ Perdido no vazio de outros passos/ Do abismo em que você se retirou/ E me atirou e me deixou aqui sozinho” - no decadentismo, o narrador cai na boemia para afogar as mágoas – qualquer semelhança com o público-alvo das músicas bregas talvez seja só coincidência... Aí vem uma sequencia de pretéritos perfeitos que aceleram o ritmo dos versos e, consequentemente da música: artifício maduro e eficaz para acabar um texto em grande estilo. Encerrando com a velha e querida e eterna solidão; completou-se então, todos os elementos necessários para uma perfeita música brega!

CA Ribeiro Neto
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ESCUTANDO NO MOMENTO: Como é grande o meu amor por você - Nara Leão
LENDO NO MOMENTO: A alma encantadora das ruas - João do Rio - pg. 88 / Não contem com o fim dos livros - Eco e Carriere - pg 59 / Dom Casmurro e os Discos Voadores - Machado de Assis e Lucio Manfredi - cap. 105.

Boa Sorte.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Semelhanças e diferenças entre Lima Barreto e João do Rio

Um texto mais sério, fazendo uma relação com dois escritores que, junto com Carlos Drummond de Andrade e Luis Fernando Veríssimo, mais me influenciam.


Semelhanças e diferenças entre Lima Barreto e João do Rio



Lima Barreto e João do Rio são dois grandes escritores do período que antecede o pré-modernismo e que tem muitas semelhanças e antagonismos bem singulares. A primeira coincidência entre eles é o sobrenome. O verdadeiro nome do João é Paulo Barreto.
Os dois são mulatos, conseguiram seu reconhecimento graças a ajuda de outros mulatos e seguiram seu próprio caminho. Lima teve grande ajuda de Machado de Assis em seu começo e do Rio contou com o auxílio de José do Patrocínio, cunhado de sua tia – que também era tia do pintor Di Cavalcante.
Lima se destacou mais nos romances, mas fazia crônicas também; João invertia esse quadro. Contudo, os dois tinham a mesma linha de falar das minorias. O primeiro tratou da questão racial, social, violeiros, doentes mentais etc.; o segundo tratou também de questões raciais e sociais, mas também da malandragem, da umbanda e do homossexualismo.
Aliás, esse é o primeiro ponto da diferença entre eles e o ponto que culminou na rixa que havia entre os dois. No primeiro livro do Lima – Recordações do Escrivão Isaías Caminha – o João do Rio é citado como sinônimo de homossexualismo. Do Rio realmente era, não assumia, mas também não negava. Enfim, João do Rio não gostou de ver sua intimidade revelada em um livro. Eles até trocaram algumas farpas via crônicas, na época.
A vida amorosa deles é bem oposta também. Enquanto o do Rio pegava geral, homens e algumas mulheres, de vez em quando, não há registro de mulheres na vida de Lima, sem contar prostitutas que naturalmente ele deve ter utilizado dos favores. A semelhança entre eles, nesse ponto, está no fato de que nenhum dos dois se casaram, cada um por seu motivo. Do Rio viveu sempre com sua mãe; e Lima, que perdeu sua mãe quando ainda era criança, viveu sempre com uma irmã.
Os dois têm livros na lista dos três livros que melhor falam do Rio de Janeiro: o já citado Isaías Caminha, do Lima Barreto; o A Alma Encantadora das Ruas, do João do Rio; e O Cortiço, do Aluísio de Azevedo.
Entre os livros que mais se destacam de cada um, Lima tem o TristeFim de Policarpo Quaresma (trata do respeito de opinião), Clara dosAnjos (trata do preconceito social) e Cemitério dos Vivos (romance baseado no período em que ficou internado em um hospício). Já João do Rio tem como sua obra mais conhecida o A Alma Encantadora das Ruas (que trata das minorias nas ruas do Rio), mas também tem Religiõesdo Rio (um estudo jornalístico-literário das religiões na cidade) e Dentro da Noite (contos que tratam da busca pelo prazer nas formas mais diferentes possíveis).
Os dois marcaram a história da literatura por falarem sobre algo que ninguém falava. Numa área bem elitista, ver uma ascensão social dessa forma era caso raro.
O mais curioso de tudo na relação desses dois é a relação de como eles eram vistos na época e como são vistos agora. Lima Barreto é notadamente reconhecido hoje, mas na época, seu reconhecimento foi póstumo, morrendo praticamente sozinho e desconhecido.
João do Rio, hoje em dia, é um desconhecido. Mas em sua época, ele era um dos escritores mais ativos, lembrados e queridos. Para se ter uma ideia, seu enterro foi acompanhado por mais ou menos 100 mil pessoas e os taxistas, nesse dia, trabalharam de graça, indo do velório para o enterro.
Hoje eles estão sendo relembrados por novas publicações de suas obras, principalmente pelo fato de que os dois conseguiram fazer o que todo grande escritor deve fazer: se destacar por escrever algo realmente interessante e de uma forma única.

CA Ribeiro Neto
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Outras obras de Lima Barreto:
- Contos completos de Lima Barreto;
- Lima Barreto versus Coelho Neto;
Outras obras de João do Rio:
- Vida Vertiginosa;
- Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde - tradução do João do Rio;
- João do Rio - Antologia de Contos. 
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ESCUTANO NO MOMENTO: Formosa - Chico, Bethânia e Nara
LENDO NO MOMENTO: A alma encantadora das ruas - João do Rio - pg. 38 / Não contem com o fim dos livros - Eco e Carriere - pg 59 / Dom Casmurro e os Discos Voadores - Machado de Assis e Lucio Manfredi - cap. 100.


Boa Sorte

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Gregório de Matos, nem tão maldito assim.

3º livro do ano, estou lendo uma antologia de poemas malditos do Gregório de Matos. Numa infinidades de poemas pesados, de muitos palavrões e acusações, uma poesia chamou minha atenção. Este poema abaixo é um dos poucos que não é uma acusação, e sim uma homenagem. Além do mais, tem essa estrutura, onde há agrupamentos de 2 em 2 versos e as últimas sílabas das palavras dos versos são os mesmos. Tenho dois textos pre-elaborados, mas esse texto merece ser lido pelo máximo de gente possível!





E ele acabou me lembrando de um velho poema meu (para entender, melhor ler em voz alta!):

Séraquees a morapai

Séraques creven doassim
Vô ceconsé guemeen tender?
Masan tesdi sosse rá
Queeucon sigotedi zê
Oquetê nhovon tade defazê?

Sô mui toti midoe
Nãoconsi gomedestra vá
Masjú roque vôten tá
Mês mossem promê ternada

Nenseio quessim toportí
Sóssei quessim toalgo
Semiá judarades cobrir
Promê totranfor málo
Numboní toefe liz
A morapai xô nado
Ien tãoque mediz
De sepo brerreca do?

CA Ribeiro Neto
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ESCUTANDO NO MOMENTO: Cicatriz - Show Opinião - Nara Leão, Zé Ketti e João do Valle.
LENDO NO MOMENTO: Antologia - Gregório de Matos - pg. 118. // Não contem com o fim dos livros - Humberto Eco e Le Carriere - pg. 18.

Boa Sorte