A dança da alegria

A dança da alegria - CA Ribeiro Neto

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Respeitem meus cabelos

Mais um texto da série 'Tudo ao meu redor', 'Respeitem meus cabelos' é uma crônica que trata da experiência de um senhor na terceira idade. Tento utilizar um vocabulário um pouco mais rebuscado, para ambientar o narrador-personagem, e também, para ironizar o padrão visto por aí.




Respeitem meus cabelos



Como as pirâmides etárias esboçam, principalmente em países subdesenvolvidos, a velhice é para poucos. Não só porque é natural que alguns faleçam pela estrada da vida, mas também porque é imprescindível um bom estado de espírito para conviver com as vicissitudes que, por mais extraordinário que pareça, podemos considerar como novidade.
Recordo-me quando, ainda adulto, tingi os cabelos alvos para disfarçá-los, já em porção considerável. Foi uma experiência somente para me arrepender; só não esqueci mesmo para não correr o risco de cometer o mesmo pecado novamente. Quem me conhecia fez traquinagens de tudo quando é jeito, algumas até de cunho sexual; e quem não me conhecia olhava-me de modo desdenhoso, como se houvesse algo de errado em mim. Em poucas horas percebi que antes assemelhar-se a um velho do que a alguém não natural.
Dediquei-me, então, a deixá-los bonitos. Talvez seja coincidência, mas nesse mesmo período o meu cabelo esbranqueceu-se de vez. Meus alunos, nas aulas de matemática, até galhofavam com isso, mas como nunca foi muito vaidoso, não me incomodei e continuei a cultivar meus cachos de algodão.
Só fui perceber mesmo as consequências da mudança de coloração, quando, num período de provas do colégio, eu estava tão cansado que me permiti deixar a barba por fazer, saí com uma camisa amassada, um jornal embaixo do braço e fui pagar umas contas numa farmácia. Logo que chego, vou compor o final da fila, já bem extensa. Daí, deparo-me com algumas pessoas me olhando até que uma bela jovem dirigi-se a mim, recomendando-me que vá para a fila dos idosos. Não soube bem o que dizer na hora, mas como estava com pressa e os olhos dos demais presentes eram de comum acordo, fui para a fila alternativa. Por sinal, acabei descobrindo que as filas dos preferenciais demoram mais, sem que, com isso, torne-se menos compensatória. Parece-me que há a cultura dos velhinhos pagarem sempre as contas de várias casas, o que, em minha mente, conjecturo como antiético.
Pois bem, como toda mudança etária – aos 12, 18, 30 e 65 anos – não acontece de uma hora para outra, ainda não estava me sentindo um velho, até que precisei pegar um ônibus. Ainda na parada de ônibus, estava a lembrar de minha juventude – talvez isso seja característica da velhice – e dos muitos ônibus que peguei; inclusive da vez que, de tão acostumado a ir em pé e os outros segurarem meus livros, numa das únicas vezes que pude sentar-me, segurei a pasta de uma moça e quando fui me levantar para descer, eu quem disse “obrigado” ao invés dela – mau educada –, que me olhava como se prendesse uma gargalhada.
Mas, enfim, subi. Já começou estranho porque eu sabia que iria subir pela porta da frente, mas não imaginava que o motorista fosse se atinar a isso e que ele pararia a porta dianteira logo a minha frente. Eu nem precisava mostrar a carteira de aposentado se não quisesse, mas fi-lo por orgulho.
Logo depois, uma mãe obriga o filho a levantar-se de seu assento para que eu possa seguir meu caminho confortavelmente e em segurança. Sinceramente, fiquei com a sensação de estar sendo inconveniente, sentei, sentindo-me meio culpado, até que veio uma frase em minha mente:

Estou velho.

Com isso, a culpa sumiu, mas não por isso fiquei tranquilo. Assim como a mudança etária, assumir a terceira idade também leva tempo – que é o que menos temos no momento. De qualquer modo, sábado tem baile da Associação.


CA Ribeiro Neto
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* Tudo em paz!
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ESCUTANDO NO MOMENTO: Incelença - Nara Leão, Zé Keti e João do Vale - Show Opinião

LENDO NO MOMENTO: Os Lusiadas - Camões - pg. 234

Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim.

4 comentários:

Emily disse...

Li um texto semelhante a esse, sobre aceitação da terceira idade... Depois confiro autor e nome, e posto aqui!
Não achei muito rebuscado. O que não tira a graça e humor no desfecho do texto, o que eu sinceramente adorei. AYGSGYASE

CA Ribeiro Neto disse...

A questão foi justamente usar umas palavras menos utilizada, sem perder a leveza da crônica.

Paulo Henrique Passos disse...

Não pude deixar de fazer a relação com a música do Chico César, que tem quase o mesmo título: "Respeitem meus cabelos brancos". Mas o caso da crônica é outro.

O texto tá bem legal. E as palavras menos usuais, como "conjecturo", algumas deram mesmo a impressão de se estar ouvindo uma pessoa mais idosa.

E, cara, valeu mesmo pelo comentário lá no blog

Abraço!

Hermes disse...

Gostei do texto, Carlinhos. Muito tranquilo de ler, e bem real. Como a maioria dos teus textos, ficou bem real heauheuae. Agora, o final tá da horinha..."Baila da Associação". Mas enfim, só acho que dava para trabalhar mais a linguagem, me pareceu um jovem falando mesmo, e não um idoso, nem que fosse um idoso de transição, não ficou bem claro.