O Ceará urbano e a sociedade dissimulada de A
Normalista de Adolfo Caminha
Terminar uma leitura com um nó na garganta, faltando poucos minutos
para começar o expediente de trabalho não é legal. Mas se isso for
necessário para se ler o livro A Normalista, de Adolfo Caminha,
então, afirmo que todos devem sentir igualmente.
Primeiro conto o inusitado caso de como consegui esse exemplar. Eu
fui de férias para Belém do Pará e uma das minhas programações
era conhecer livrarias e sebos paraenses e comprar alguma coisa da
literatura local. Não é que tal Estado não tenha bons escritores,
mas não me agradei com o que encontrei. Mas, vasculhando bem por lá,
encontrei um livro de um autor cearense que sempre tive vontade de
ler, mas não oportunidade. Uma edição linda, capa dura, folhas
amareladas, um pouco mofado, mas nada exagerado.
Além do fato de eu viajar vários quilômetros para comprar um livro
paraense e acabar comprando um cearense, o que há de mais curioso é
que no teor da história começa com uma relação entre os dois
Estados: o livro conta a história da Maria do Carmo, uma adolescente
que acompanhou o pai no êxodo, do interior para Fortaleza. Mas daí
em diante, o pai resolveu tentar ganhar a vida em Belém, enquanto a
moça ficou aos cuidados do padrinho João da Mata. Vejam como Adolfo
Caminha coloca a comparação entre as duas cidades na voz de João:
“A vida no Ceará não valia coisíssima alguma. O
Pará, sim, aquilo é que é terra de fatura e de dinheiro. Um homem
trabalhador e honesto como o compadre, com uma pouca de experiência,
podia enricar da noite para o dia. Os seringais, conhecia os
seringais? Eram uma mina da Califórnia. Tantos fossem quantos
voltavam recheados, de mão no bolso e cabeça erguida. E o Ceará?
Fome e miséria somente. Num mês morriam três mil pessoas, eram
mortos a dar com o pé, morria gente até defronte do palácio do
governo, uma lástima!” - A Normalista. Adolfo Caminha. Pág. 33
Já nessa primeira citação deu para notar o tom forte que são as
palavras do autor. Em todo o livro ele é assim, não só critica o
lugar, como a sociedade e os seus personagens.
É interessante ver um livro da época do Proclamação da República,
no Ceará, em tom urbano, ainda que não modernizado. Algo
infelizmente tão incomum na literatura cearense. E essa urbanização
traz a característica, comum em tantas obras, de ser amada e odiada.
O livro louva que a capital é melhor lugar que o interior, mesmo com
“...esse tumultuar quotidiano de virtudes fingidas e
vícios inconfessáveis, esse tropel de paixões desencontradas, isso
que constitui, por assim dizer, a maior felicidade do gênero humano,
esse acervo de mentiras galantes e torpezas dissimuladas, esse
cortiço de vespas que se denomina – sociedade.” - A Normalista.
Adolfo Caminha. Pág. 34
Os personagens são, cometendo injustiças: Maria do Carmo, a tal
normalista, adolescente meiga, que morria de amores pelo namoradinho
e era abusada pelo padrinho, detestava esse abuso, mas recorria a ele
quando necessitava de algo; João da Mata, o padrinho sem escrúpulos
que ficou obcecado por tirar a virgindade da afilhada; Zuza, o
namoradinho da alta sociedade, que apesar de a amar, fugiu para
Recife, evitando um casamento escandaloso por questões de status
social; e os demais personagens também, todos, cheios de defeitos.
A história, apesar de não muito grande, é bem construída,
ponderando-se sempre as questões pessoais e sociais de cada
personagem. Um personagem é nobreza num dado contato pessoal e
plebeu em outro.
Há passagens memoráveis no livro. O casamento da amiga, a morte e o
enterro do presidente da província, os passeios escondidos do casal
apaixonado, a cena principal, que é do João tirando-lhe a
virgindade. Todas bem curiosas.
Sem falar de um final incrível, que para evitar revelar algo, mais
levantar a curiosidade, menciono apenas que os contemporâneos do
autor, e seus atuais leitores, como eu, devem todos terem se
assustado com o que leram.
CA Ribeiro Neto
-x-||-x-
ESCUTANDO NO MOMENTO: Jogador - João Bosco
LENDO NO MOMENTO: A Normalista - Adolfo Caminha - Concluído || O Livro das Perguntas - Pablo Neruda - pág. 38 || A Insustentável Leveza do Ser - Milan Kundera - pág. 0 || O Cravo Roxo do Diabo - org. Pedro Salgueiro - pg. 27.
Um comentário:
Devo admitir - como se ainda precisasse porque já repeti isso tantas vezes e para tantas pessoas e em tantos textos que receio não precisar mais - que prefiro os autores e técnicas mais recentes, que amo (e odeio também, por que não?) a pós-modernidade e as tendências contemporâneas da literatura. Porém, de uma forma surpreendentemente impressionante, muito me agradam os naturalistas. Acho instigante a maneira como eles veem as coisas e o mundo. Por conta disso, e por Caminha mencionar Belém nos seus tempos áureos do ciclo da borracha, fiquei com vontade de ler.
(:
Postar um comentário